Em 25 de maio deste ano, o assassinato de George Floyd, vítima de um policial branco em serviço e filmado por pessoas que flagraram o crime, chocou a população negra de Minneapolis, em Minnesota, nos Estados Unidos. Rapidamente o luto transformou-se em revolta nas ruas e de lá pra cá são 18 dias de intensos protestos antirracistas em várias cidades do país. A rápida circulação das imagens de violência policial, uma constante na vida dxs negrxs, além das cenas de protestos com ações diretas contra estabelecimentos públicos mobilizaram artistas, ativistas e coberturas midiáticas em âmbito internacional. Aqui no Brasil, os assassinatos recentes de Miguel da Silva na quarta-feira (3), criança vítima de negligência racial da empregadora de sua mãe, e João Pedro, em de maio, adolescente baleado em casa durante uma operação policial no Rio de Janeiro, cruzam as realidades dos dois países mais uma vez, no que tange à discriminação racial. Essa sequência de acontecimentos parece recolocar, de maneira inédita no debate público, a pauta do racismo em meio à pandemia de coronavírus, mobilizando questões sobre a organização do racismo como estrutura social, as diferenças e semelhanças dessa estrutura em várias partes do mundo, as consequências das políticas racistas na pandemia e possibilidades de superação do modelo por via da mobilização. O direito à vida em uma sociedade racista é seletivo e para conversar sobre este tema convidamos o pesquisador e ativista Joshua Reason, que está acompanhando os protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) de perto, nos estados Unidos.
Joshua Reason é um acadêmico negro não-binário que junta performance, geografia, e etnografia para analisar os acervos físicos e afetivos da comunidade negra LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros, Queer, Intersexuais; o+ significa todas as outras identidades). A tese de Joshua foca em Salvador/Bahia, porém faz várias conexões entre os EUA e outros países nas Américas. As pesquisas dele são baseadas na ideia que solidariedade transnacional, a síntese das estéticas dos negrxs, políticas e desejos como imprescindível para nossa libertação. Atualmente, Joshua é um estudante de doutorado em Estudos Negros na Universidade da Pensilvânia. É mestre em Estudos da América Latina (com especialização em Estudos LGBTQI+) da Universidade do Texas, em Austin e bacharel em Estudos da América Latina (com certificado avançado em Espanhol) pela Carleton College – Minnesota. Recentemente, Joshua recebeu o prêmio de melhor dissertação na Teresa Lozano Long Instituto de Estudos da América Latina (LLILAS).
Confira a entrevista realizada por Tâmara Terso*
Tâmara Terso: Entendemos que a violência policial contra pessoas negras é instrumento de um sistema político e econômico baseado nas desigualdades raciais. Na sua opinião, quais são as semelhanças e diferenças do racismo estruturante no Brasil e nos Estados Unidos?
Joshua Reason: Essa pergunta é interessante porque tem vários mitos aqui sobre estrutura, intervenção militar e o racismo velado no Brasil. Para começar, no geral, na diáspora tem racismo em todo lugar, porém, a forma como nossas histórias dialogam com a escravidão, racismo e tudo mais, tem certas convergências e divergências. Vou falar mais sobre isso.
Nos Estados Unidos, a gente teve um grande movimento de direitos civis que começou se não me engano, em 1954 e foi até o final de 1968, por aí. Ele teve grandes líderes como Martin Luther King Jr, Malcolm X, Angela Davis e outras figuras que todo mundo conhece. O movimento marcou um grande momento em nossa história enquanto país; fez várias mudanças de leis e também sociais. Agora vemos que a hegemonia da supremacia branca muda de forma em cada momento e ao mesmo tempo se mantêm. Então, hoje mesmo não tendo as leis de segregação (Jim Crow) estamos vivendo um momento de muita desigualdade, no qual você sabe onde estão os brancos e os negros em uma cidade, por exemplo. Nesse sentido, o racismo ainda é muito estrutural. Também temos que falar sobre o fato dos Estados Unidos ser um Estado Militar. É um lugar que mesmo não estando presente da mesma forma que o Brasil, os militares e a guarda sempre estão controlando a sociedade. Nós estamos vendo isso agora e eu vou falar mais sobre Minneapolis nas outras perguntas, porque eu fiz minha graduação lá, porém essas manifestações estão acontecendo tão rápido por causa da militarização. O fato de terem militares e ter esse poder militar que pode ser usado em nosso país é algo meio escondido, mas todo mundo sabe que é possível. É algo que a sociedade esquece, porque eles não estão sempre presentes, fisicamente, mas estão presentes na nossa memória, nos nossos traumas. A gente sabe que essas estruturas de policiamento existem. Então, falando nos Estados Unidos eu queria destacar esses dois pontos: 1) a história do racismo contra os negros e outras populações, assim como a luta por direitos civis documentada; e 2) a militarização dos Estados Unidos. Quando falamos de militares, a gente tende muito a falar das invasões dos EUA em outros países, mas não falamos do fato que nossas comunidades aqui também estão sendo invadidas, neste momento e em outros momentos. Essa questão me lembra muito os tipos de ocupações e invasões que acontecem nas favelas e periferias do Brasil. Outra coisa é que no Brasil a questão de raça é mais complicada. Quando penso em raça no Brasil, sempre penso no sistema de cotas e como ele destacou o grande problema no país quanto ao tema da raça. Quem tem o direito de ser negro e quem não tem? Eu acho que é um problema porque os que fazem parte da comunidade negra e sabem que não tem nenhuma outra opção, a menos ser negro no mundo, ficam frustrados com essa questão. As pessoas sabem quem é negro, de certa forma. Claro que algumas coisas mudam por região, por experiência, mas dá para saber quem não é negro e quem é percebido no mundo como negro. E parece que isso fica subentendido. Já nos Estados Unidos, de certa forma, por causa do processo de racialização a gente tem uma ideia mais nítida de quem é negro e quem não é. A gente já discute colorismo. E eu percebo que no Brasil essa questão é fundamental nos debates estruturais: a quem é permitindo se auto-declarar negro e quem não é. Isso acaba afetando muito a forma que a política se estrutura, porque tem que pensar quem é que pode nos representar nesse contexto. Agora, o que nos une é a questão da militarização e é um momento para pensarmos juntos como as mortes das pessoas negras e as formas de policiamento estão relacionadas e nos restringem.
TT: Desde 2013 o movimento Black Lives Matter parece atualizar as formas de fazer a luta antirracista nos EUA, denunciando a violência policial. Para você, o que difere esse movimento das lutas por Direitos Civis e do Poder Negro nos anos 60, do século 20?
JR: Vou começar com esses dois movimentos dos direitos civis e poder negro, porque eu acho que ainda tem muitos mitos de quem estava envolvido, quem importa na construção e a diferença com o movimento que acontece hoje. Faço muitas pesquisas sobre pessoas negras LGBTQI+ , principalmente em Salvador, conectando com as ações que estudo aqui nos Estados Unidos. Eu acho que tem tanto hoje quanto nos movimentos antigos o apagamento das pessoas negras LGBTQI+ dentro dos dois movimentos iniciais, mesmo elas existindo e lutando pelas mesmas coisas. Uma forma em que vejo isso nos Estados Unidos é como separaram da luta por direitos LGBTQI+ o movimento negro, que no passado estavam acontecendo ao mesmo tempo, mas eu acho que por vários motivos não eram vistos uma como parte da outra. O movimento LGBTQI+ realmente começou com Stonewall e lembramos que Stonewall foi começado pela Marsha P. Johnson, mulheres trans negra, e Sylvia Rivera, uma latina que morava em Nova York. Quando pensamos nisso, observamos que esse movimento fazia parte dos direitos civis dos negros. Eu não lembro quem exatamente falou isso, mas virou uma frase popular: “não somos todos libertados até que todos sejam libertos de verdade”. Então, acho importante ver o movimento LGBTQI+ como parte da luta por direitos civis, para comunidade negra e poder negro. Outra coisa, eu acho que as mulheres negras também foram marginalizadas na articulação dos direitos civis e do poder negro. Agora a gente está resgatando essas figuras, focando mais nelas, lembrando delas. Porém, ainda tem muito trabalho para articular que todos os negros importam. Falando do Black Lives Matter, é importante começar pela articulação do coletivo e dos seus motivos: TODAS AS VIDAS NEGRAS IMPORTAM. Tem uma parte no manifesto delas, porque o movimento começou por três mulheres negras, que é: TODAS AS VIDAS NEGRAS IMPORTAM, falando sobre pessoas com várias deficiências e necessidades, pessoas LGBTQI+; sobre várias partes da comunidade e, no geral, sobre manter a vida negra, mas também entender nossas diferenças e semelhanças dentro da comunidade. Por isso, acho que quando se pensa nesse movimento, nessas diferenças referentes à forma de lutar, o Black Lives Matter realmente tem pensado em táticas estratégicas de destacar essas comunidades; protegendo não apenas uma parte da comunidade como homens cis negros, que também merecem proteção e precisam, mas mobilizando por todos nós. A articulação dessas mulheres é muito importante não só nas formas de mobilização, mas na visibilidade de quem está mobilizando: várias crianças, pessoas com necessidades, LGBTQI+, mulheres, que sempre estiveram na luta, mas não apareciam. Agora esses espaços são mais acolhedores e mais acessíveis. Os protestos de hoje em lugares como Mineápolis e Filadélfia estão tentando criar um movimento em que ninguém seja deixado de lado.
TT: O assassinato de George Floyd, morto por um policial branco em 25 de maio deste ano, em Minneapolis, desencadeou uma série de protestos nos EUA dando visibilidade ao racismo. Na terça-feira (2), a Organização das Nações Unidas classificou em nota a discriminação racial como uma endemia nos EUA e no Brasil, analisando o desenvolvimento desenfreado da pandemia de COVID-19 em decorrência das desigualdades raciais. Como você entende esse momento de confluência entre aumento das violações dos direitos das pessoas negras e os protestos denunciando o assassinato de George Floyd nos EUA, ambos em contexto de isolamento social?
JR: Essa pergunta é importante por vários motivos. Primeiramente, não dá pra falar sobre os assassinatos sem o contexto do coronavírus. E segundo que, de novo, essa atenção e articulação pelos direitos civis às vezes ajudam a supremacia branca mudar/permutar de certa forma. Eu explico isso adiante. A primeira parte, falando da relação entre o coronavírus e esses assassinatos, acho que o fato de pessoas negras ainda serem assassinadas por policiais durante uma quarentena mostra a forma que não apenas o racismo, mas o terrorismo funciona – porque eu acho que temos que começar a chamar essas coisas de terrorismo e genocídio. O terrorismo e o genocídio não param por causa de uma pandemia, até amplifica de certa forma. As pessoas agora estão mais empoderadas para fazer certas coisas como entrar nas nossas casas e nos matar enquanto estamos dormindo, tipo Breonna Taylor, ou correndo como Ahmaud Arbery e várias pessoas para além do George Floyd que estão sendo assassinadas num momento em que todo mundo devia estar isolado, hipoteticamente. Deveríamos estar isolados, em casa o máximo possível e também deveríamos estar ajudando uns aos outros. Esse é o discurso da igualdade que as pessoas estão compartilhando, mas os atos que estão acontecendo não estão demonstrando isso. Não é contraditório. Eu não vou usar a palavra ‘contraditório’, porque enquanto as pessoas não nos verem como humanos, como pessoas que merecem vida, cuidado e tudo mais, não entraremos nesse discurso da humanidade. Então, de certa forma, acho que essa articulação da ONU pode ajudar. Eu acho que denunciar um país como os Estados Unidos e o Brasil é um grande passo – curar tipos de danos que machucam nossa comunidade. Porém, ao mesmo tempo, acho que essas articulações correm o risco de proteger certas pessoas porque está denunciando, mas também está dando aos governos o poder de mudar as regras. Não está colocando o poder nas mãos das pessoas desses países ou em outras mãos diferentes das usuais do poder. Essas articulações de organismos internacionais estão dizendo, principalmente ao Trump e ao Bolsonaro, que tem que fazer alguma coisa sobre o racismo e já sabemos que no momento de políticas muito conservadoras não podemos confiar nas ações dessas pessoas. Agora, falando um pouquinho mais do vírus, acho que está mostrando a realidade do racismo de uma forma que todo mundo tem que olhar. Esse ato de olhar, de prestar atenção ao que está acontecendo, acho que até Frantz Fanon fala algo a respeito, é muito importante para nossa libertação, porque quando as pessoas não estão olhando o que está acontecendo, enquanto não estão prestando atenção nossas mortes continuam sem nenhum tipo de protesto, denúncia, sem nada. E não é pra dizer que ver nossas mortes é algo curativo, porque não é. É um trauma e a gente ainda está curando esses eventos que eu listei e os que eu não consigo listar. Ao mesmo tempo, o ato de ver o que está acontecendo e chamar de assassinatos, genocídios e terrorismo é muito, muito importante para nossas lutas. E vou terminar com mais dois relatos: eu estava vendo no Facebook de um amigo que estão acontecendo vários atos terroristas para além dos assassinatos. Agora tem uma lei, não sei se Estadual ou Federal, que proíbe despejos no momento da pandemia, mas tem corretores e donos de apartamentos que estão entrando nas casas das pessoas negras sem avisar, dando notas de despejo, chamando a polícia para entrar nas casas de pessoas ilegalmente, acusando-as de não pagarem o aluguel e que, portanto, não tem direito de ficar. Então, é realmente um momento muito difícil por vários motivos e conecta muito ao que está acontecendo no Brasil também. Esses tipos de deslocamentos, gentrificação de bairros e esses atos cotidianos de terrorismo contra nossas comunidades, contra nossos corpos são bem reais e são coisas que não acontecem apenas aqui e aí, mas na diáspora toda. Então, outra coisa é saber desses relatos muito importante para fortalecer nossas lutas, sabendo dos tipos de violência para além das mortes que estão acontecendo nesse momento e como os brancos estão se aproveitando desse momento para machucar as nossas comunidades. Eu fui um pouco longe na questão, mas acho que o efeito do coronavírus nos protestos apresentou um momento para gente se manifestar e se mobilizar, mas ao mesmo tempo os brancos estão utilizando esse tempo para pensar em como podem manter esse ciclo de terror e genocídio no mundo; como podem manter a hegemonia para que seu poder enquanto brancos permaneça.
TT: Como a sua pesquisa sobre direitos das pessoas negras LGBTQI+ nos EUA e no Brasil dialoga com a conjuntura atual de protestos contra o racismo? Você acredita que os protestos podem ganhar força de cooperação internacional?
JR: Falando da minha pesquisa, ela está relacionada a várias coisas, mas no geral eu estudo sobre geografias negras LGBTQI+, com a questão de como o entendimento diferente da cidade pode vir através das perspectivas de pessoas negras LGBTQI+. Meu foco na dissertação foi Salvador, e agora na tese de doutorado eu começo fazendo as conexões entre os EUA e o Brasil. Desde a dissertação eu falava sobre essa conexão, mas por causa do momento e por várias coisas que aprendi estou vendo a importância de falar mais sobre as nossas vidas, as nossas experiências com várias formas de policiamento, e formas de usar e existir num espaço. Eu acho muito importante para fortalecer nossas lutas. Falando da luta atual, dos protestos denunciando a morte de George Floyd e de várias outras pessoas negras que foram assassinadas pela polícia, acho que esse tipo de pesquisa vale muito, não apenas pelo fato de falar de uma comunidade que ainda está muito marginalizada nesses protestos – mesmo o Black Lives Matter articulando que todas as vidas negras importam, tem certas pessoas que usam a bandeira do movimento e não representam isso. É uma coisa que eu vou falar depois, porém é uma realidade que a gente, enquanto comunidade negra, precisa discutir para realmente articular contra quem a gente está lutando. Acho que minha pesquisa também é importante porque trata das formas com que nós somos restringidos nos espaços. Como a supremacia branca é um problema espacial que controla como as pessoas andam no mundo, e não apenas no meu país, mas em outros países, no mundo inteiro. Têm várias formas em que a supremacia branca e a heteronormatividade limitam as pessoas e os movimentos das pessoas. Um exemplo que eu sempre dou é que conheço várias pessoas trans aqui nos EUA que não conseguem pegar avião ou viajar sem ter identificação com nome social e foto atual. E têm várias outras políticas que acabam trazendo várias violências, porque como a gente vive em um estado militar, é só um momento, é só uma desculpa que os policiais precisam para mexer com sua vida – pode ser qualquer coisa. Vemos isso em todos os casos: se você estava fora de casa durante o toque de recolher, que é uma realidade agora em várias cidades, ou esqueceu de pagar o aluguel terá um monte de policiais e a guarda na sua porta, batendo na sua porta porque você acabou não pagando algo que você não teve dinheiro para pagar. Então, acho que todas essas questões têm relação com o espaço em si e como nossas ideologias sociais constroem o espaço. Falando da cooperação internacional, já estão acontecendo vários protestos na Europa e na América Latina não apenas apoiando a situação aqui, mas denunciando a supremacia branca em todo canto, em todos os países, todos os governos. Já está acontecendo. Eu vi um protesto em Amsterdam, porque eu tenho um amigo trans-masculino que estava fazendo uma entrevista em um dos maiores canais de televisão no Reino Unido, e ele faz parte do Black Lives Matter do Reino Unido. É importante falar que têm vários líderes negros LGBTQI+ no Black Lives Matter em vários lugares, então eu acho que a mobilização que está acontecendo em vários países agora, está acontecendo por causa dessa organização internacional. Essa cooperação internacional vai ser mais visível daqui por diante.
TT: Aqui no Brasil, em resposta aos protestos contra a cobertura por parte da mídia mainstream sobre o movimento Black Lives Matter, os meios de comunicação decidiram visibilizar, pontualmente, xs comunicadorxs negrxs por um dia. Como você percebe o papel da imprensa na cobertura dos protestos antirracistas nos EUA?
JR: Eu acho muito importante o papel da imprensa em disseminar, produzir e distribuir as notícias que tratam da situação de protestos nos EUA, principalmente, divulgando nos jornais internacionais, porque geralmente não tem nenhuma cobertura sobre nossa situação e nossas vidas na mídia, ou quando tem são feitas por pessoas brancas. Nesse sentido, acho que a iniciativa da Rede Globo foi interessante, porém, tenho receio como ato pontual, porque parece que é o bastante, e não é. Se isso virar uma solidariedade internacional mais frequente; se um conjunto de jornalistas negros tiver acesso ao debate e protagonismo permanente será ótimo. Por causa da falta de mobilização nos espaços jornalísticos e cooperação entre os dois países para pensar a questão do povo negro, acho importante pensar outras formas de comunicação. Temos alguns veículos negros, feitos por pessoas negras, mas infelizmente não temos muitos, não tantos na proporção de comunicar como os jornais tradicionais. Não sei se no Brasil têm muitos. Como acadêmico faço minha parte, traduzindo os conteúdos que eu posso. Os meus amigos acadêmicos que fazem pesquisa nas Américas (Central e do Sul, principalmente no Brasil) tentam traduzir artigos e notícias que falam sobre nós, assim como construir relatos sobre nossas experiências em outras línguas. Eu acho muito importante esse trabalho e também muito pessoal. O que vem acontecendo muito é o que vocês do CCDC/UFBA estão fazendo agora: entrevistas e matérias conosco, sobre nossa realidade. E nós circulamos em nossas redes, distribuindo essa informação. Isso serve para combater fake news, impressões falsas sobre nossa situação. Então, hoje é o que temos, “nós por nós”. Eu sempre estou aberto para explicar a situação que vivemos aqui nos EUA, mesmo não sendo a única pessoa ou talvez não sendo nem a melhor pessoa que saiba da conjuntura, mas que segue e está dedicada a essas lutas. Qualquer acadêmico que está dedicado ao tema deve fazer o mesmo.
TT: É possível acreditar que os protestos antirracistas nos EUA vão ganhar proporções maiores nas próximas semanas, tornando-se um elemento balizador para eleições presidenciais? Qual é sua avaliação do crescimento da reação conservadora, sobretudo os supremacistas brancos?
JR: Vou responder a segunda parte e depois respondo sobre a presidência, porque acho muito importante falar da segunda parte. A cobertura dos protestos às vezes não mostra tudo. Eu acho que uma das coisas que está difícil de explicar é quem está fazendo determinados atos. Aqui o discurso é de que os atos estão destruindo tudo, as pessoas estão quebrando tudo de uma forma indiscriminada, mas na verdade, como eu falei antes, tem vários supremacistas brancos que estão aproveitando do momento para fazer vários atos dizendo que são os protestos do Black Lives Matter e de outros grupos antirracistas. Daí fica complicado, porque estão destruindo certos lugares e as pessoas estão colocando a culpa na comunidade negra, que por sua vez está fazendo protestos utilizando certas táticas de saque e derrubada de alguns lugares, como empresas que já se aliaram com a polícia, como as marcas Target e Walmart. Esses lugares já barraram várias pessoas negras e são alvos de protestos. Os protestos antirracistas estão devolvendo a violência para esses espaços, violando seus patrimônios. É uma tática importante, porém os supremacistas brancos estão fazendo ações de depredação e violência, utilizando o precedente dessa tática legítima, para gerar violência contra o movimento e pessoas negras que os representam. Para mim, esse fator dá bastante medo. Eu acho que agora as pessoas estão entendendo mais especificamente quem está representando o movimento antirracista e quem não está, porque tem várias pessoas, especialmente brancas, que estão levantando a bandeira sem realmente representar o que isso significa. Estou falando isso, não porque quero negar as táticas de saques e ocupações de espaços. Eu não quero negar essas táticas válidas e importantes do movimento, mas tem que ser uma coisa bem pensada e organizada, em certos sentidos, para evitar esses tipos de convulsões.
Sobre as eleições presidenciais, eu acho que já está tendo certo efeito e podemos perceber que os democratas estão tentando aproveitar dos protestos para se aproximar mais da comunidade negra, ao passo que os republicanos estão denunciando essas comunidades e ganhando força entre os supremacistas brancos. Porém, essa parte da política, basicamente, não vale nada para os negros, para aqueles que apoiam os protestos e estão protestando nesse momento, porque Joe Biden (candidato democrata) já falou várias coisas erradas e pesadas sobre os protestos. A sua declaração mais recente afirmou que para deter os negros que estão protestando ou invés de matá-los era possível atirar em partes do corpo, de modo que não fossem levados a óbito. É muito triste isso! Algo que não dá para comentar e demonstrar o estado da nossa política. Não temos nenhum partido, nenhum representante que realmente represente os nossos interesses. Tem alguns representantes que ainda concorrem para serem candidatos, mas não tem nenhum candidato à presidência que vai mudar tudo. Realmente o poder tem que ficar com o povo. Esse tipo de produção de protesto e pensamento sobre nosso futuro enquanto povo/comunidade tem que continuar de qualquer forma, seja com Trump ganhando as eleições mais uma vez ou com um presidente do Partido Democrata. Não dá para pensar que as eleições vão nos salvar, porque este é um sistema quebrado.
TT: O movimento Black Lives Matter atualmente impulsiona uma campanha de sistematização dos anseios políticos da população negra estadunidense, em forma de programa para disputa de poder. Referindo-se ao mote, o que importa para você em 2020?
JR: É uma pergunta interessante e que todo mundo tem que se perguntar nesse momento em nossa comunidade: o que queremos não apenas para 2020, mas para nosso futuro enquanto comunidade. Talvez seria um pouco radical, mas algo que estava pensando para mim e que faz parte das conversas na comunidade é pensar num certo tipo de quilombo: como é que nós podemos reconstruir nossas comunidades para xs nossxs. Acho que uma política negra tem que ter isso em mente, porque como eu falei a política no geral aqui nos EUA não serve às nossas comunidades. A gente já sabia disso desde o início e estamos vendo isso derrubando nossas comunidades. Eu acho que é o momento de reinvestir em nossas comunidades, nossas Faculdades (porque existem Faculdades negras); reinvestir nos nossos negócios e serviços. São coisas que já estavam nos mantendo e vai nos manter para depois que tudo isso passar, quando cair tudo, porque esse sistema um dia vai cair. E quando cair o que vai ter depois. Eu estou pensando muito nisso agora: começar a reconstruir as nossas comunidades negras e criar nosso próprio sistema econômico e de apoio em vários sentidos, porque um dia o capitalismo vai cair. Então, como é que a gente pode reconstruir e apoiar xs nossxs até que isso aconteça. Isso passa em reinvestir em nós e não apenas nós aqui nos EUA, mas na diáspora. Como podemos criar redes internacionais para apoio mútuo. Eu tenho alguns pensamentos que podem virar projetos daqui para frente. Acho importante que esses projetos sejam com todos nós, se estenda para além das pessoas heterossexuais, cheguem às pessoas negras, mulheres e homens cis, transgênero, pessoas não binárias como eu; pessoas com várias necessidades, para além do que se convencionou chamar de normativo; diversos níveis de pobreza e riqueza. Realmente é o “nós por nós”, e espero que possamos continuar reconstruindo e construindo juntos.
*Tâmara Terso é Jornalista, Mestra e Doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas na Universidade Federal da Bahia (POSCOM-UFBA). Integra como pesquisadora o Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania (CCDC/UFBA) e o Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso (CEPAD/ UFBA).
A entrevista contou com a colaboração dos bolsistas do CCDC/UFBA, Everton Ruan e Andressa Franco.